Marcelo Comparin

A Hierarquia das Virtudes e dos Propósitos: entre a infância do desejo e a maturidade do dever.

Como psicólogo com mais de duas décadas de escuta clínica, tenho percebido que grande parte do sofrimento moderno nasce da confusão entre desejo e propósito. É comum ver adultos esperando que a vida os recompense por fazerem apenas o que gostam — como se a felicidade fosse um direito automático, não uma construção comprometida.

É nesse ponto que uma frase que costumo repetir aos meus pacientes entra em cena:

“Criança faz o que gosta. Adulto faz o que tem que ser feito.”

Essa frase, muitas vezes provocativa, não é uma sentença dura. Pelo contrário: é um convite à maturidade emocional. E ao refletir sobre isso, encontro respaldo na filosofia clássica de Aristóteles, especialmente na teoria das virtudes cardeais.


O que Aristóteles tem a ver com a clínica psicológica?

Para Aristóteles, a vida boa (eudaimonia) não é apenas prazer ou sucesso. É viver com excelência, cultivando virtudes. As quatro virtudes cardeais são:

  • Prudência (phronesis):a sabedoria prática de quem age com reflexão.
  • Coragem (andreia):a disposição de agir apesar do medo.
  • Temperança (sophrosyne):o equilíbrio entre os impulsos e os limites.
  • Justiça (dikaiosyne):dar a cada um o que lhe é devido.

Essas virtudes não são traços de personalidade fixos, mas hábitos que podem ser treinados, como músculos éticos. Na clínica, vejo diariamente pacientes lutando para alinhar seus desejos infantis com as exigências da vida adulta — e é aí que a hierarquia de propósitos se torna ferramenta terapêutica.


Hierarquia de Propósitos: o que realmente importa vem primeiro

Costumo trabalhar com o conceito de Hierarquia de Propósitos, ajudando o paciente a diferenciar:

  • o que é importante,
  • o que é urgente,
  • o que é desejo passageiro.

E quando ele começa a organizar sua vida segundo essa hierarquia, surgem perguntas profundas:

  • O que eu quero fazer?
  • O que eu preciso fazer?
  • O que eu devo fazer?

Essa reflexão abre espaço para que o paciente amadureça sua bússola interna — e entre em contato com virtudes como coragem para enfrentar conversas difíceis, prudência para tomar decisões conscientes, temperança para não se deixar levar por impulsos, e justiça para cuidar de si e do outro na medida certa.


Do desejo à maturidade: a travessia do adulto que decide crescer

A integração entre psicologia e filosofia não é apenas intelectual: ela é prática. Quando o paciente compreende que não basta “fazer o que gosta”, ele começa a construir uma vida com base em valores sólidos, e não apenas em emoções momentâneas.

E o curioso é que, ao assumir o que “tem que ser feito”, ele descobre algo surpreendente: realizar o necessário pode ser, sim, profundamente satisfatório — mais do que qualquer prazer fugaz.


Conclusão: virtudes como bússola terapêutica

Trabalhar com virtudes é trabalhar com o que sustenta o ser humano mesmo nos dias difíceis.

Mais do que aliviar sintomas, é formar caráter, orientar a ação, e ajudar o sujeito a encontrar um sentido que resista às crises.

Em tempos de atalhos, filtros e recompensas imediatas, a maturidade pode parecer antiquada. Mas, como psicólogo, continuo apostando no adulto que decide crescer — e que entende que a verdadeira liberdade não está em fazer tudo o que quer, mas em escolher bem o que merece ser feito.